O Sonho do Carreteiro - Luiz Menezes

Carreteou anos a fio...


Conhecia palmo a palmo

as estradas da querência;

Sabia onde dava passo -

no tempo das enxurradas -

aquele arroio sotreta,

cemitério de carreta

disfarçado em água mansa .

Vira nascer muitos ranchos

nesse corredor sem fim.



Sabia que na picada,

logo depois do lagoão,

o umbu do enforcado

dera lenda prás estórias

dos bolichos, das ramadas.



Sabia bem todo o causo

da tapera do repecho:

A maula traíra o guasca

e este sem dó nem piedade,

cortara junta por junta

o belo corpo moreno

daquela indiazinha louca

que se engraçara num piá ...



Mas além, no Passo-feio

vira morrer um tal Juca.

Eram três contra o rapaz.

E como morrera lindo

aquele guasca sem medo ...

A estória ficou em segredo

pois diz que o tal de mandante

era mui relacionado,

e até contra-parente

de um graudaço do povo.



Conhecia palmo a palmo

as estradas da querência,

sempre fora carreteiro.

Envelhecera na lida

sem conhecer outra vida

sem ter outra ocupação.

Tinha por seu ganha-pão

a velha carreta amiga

companheira de cantiga

daquele piazinho vivo

que era, alegria e motivo

de seu final de existência.



Pois ficaram bem solitos

mais amigos do que antes

des’que a finada se fora ...

Por isso sempre de noite

a meia luz do candieiro

ficava horas inteiras

mostrando prá seu piazinho

as letras do ABC.



E o piá com muita memória

decorava uma por uma

as letras que galopeava,

ou por outra, engarupava

nas palavras do jornal.

Como era esperto o guri:

Foi duas, três paletadas

já sabia mais que o pai ...



E foi numa dessas noites

que o velho e bom carreteiro

teve um sonho de repente.

E quase num gesto louco

gritou prás quatro paredes

enfumaçadas do rancho:

Meu filho há de ser doutor!

Não há de ser carreteiro,

pois estas mãos calejadas

do peso-bruto, da enxada,

hão de sangrar no trabalho

prá que este piazinho feio

viva melhor do que eu ...



Pura e santa ingenuidade!

O arroio-sociedade

prá o pobre nunca dá vau!!



No outro dia cedinho

enveredou para o povo ...

Voltava a velha carreta

A resmungar nas estradas

na viajada da esperança

carregadinha de sonhos.

E o pobre e bom carreteiro

ia falando de tudo

com seu piazinho faceiro

dentro da bombacha nova.



Não esquecia de nada

nos seus conselhos de pai:

Se lá no povo à tardinha

o piá sentisse saudade,

bombeasse prá o horizonte,

que alguém solito decerto

meio tristonho é verdade,

mateando assim com saudade

estaria a lhe esperar ...



Que importa se demorasse,

pois nunca ouvira dizer

que a tal saudade matasse.

Mas nesse dia por certo

Quando voltasse doutor

tudo havia de mudar.

Até o céu com certeza

morada das almas puras

ouviria com ternura

uma indiazinha chorar.



E as estradas da querência

que conhecia demais,

lhe viram passar feliz

com novo brilho no olhar.



Mas lá no povo - cuê-puxa! -

Bateu em todas as portas

clamou por todos os santos

recorreu todos os amigos

- muitos dos quais ajudara -

andou quase mendigando,

Prá dar escola pra o filho

mas ninguém quis lhe escutar ...

E a esperança foi mermando

foi mermando ... e se apagou.



Botou a carreta na estrada

o piazinho dentro dela

tocou de volta outra vez.

A noite então já chegara.

Naquela enrugada cara

de gigante das estradas

uma lágrima teimosa

veio molhar-lhe o nariz ...



Olhou o filho com carinho,

mas com muito mais carinho

Com mais amor do que antes

e uma queixa derramou:

Quem nasce lutando busca

a morte por liberdade!

Mentira! A tal de igualdade

não existe por aqui ...

Que adianta se amar aos outros

se os outros não dão amor?



Pega a picana, piazinho

e acorda esse boi manheiro,

pois filho de carreteiro

nunca pode ser doutor!!